Para os que vivem a fé cristã de forma epidérmica, e até tradicionalista ou fundamentalista, esta festa se reduz à afirmação de que Maria, como futura mãe de Jesus, foi concebida, por seus pais, sem a mácula do pecado original (uma espécie de privilégio dado a ela pela graça de Deus como futura mãe de Jesus). Como a doutrina medieval do pecado original caiu praticamente em desuso, se perdeu muito da beleza e da irradiação do sentido religioso profundo contido nesta festa: que a grandeza da graça de Deus precede, em nós, o pecado que nos apequena.
Celebrada antes do Natal de Jesus, a festa da Imaculada Conceição adquire uma dimensão teológica fecunda e se reveste de um simbolismo singular, pois traduz bem mais que o conteúdo afirmado na letra deste dogma mariano. Os dogmas marianos são quatro:
1. o da Virgindade de Maria ao conceber Jesus;
2. o da Maternidade de Jesus, o Filho de Deus;
3. o da Imaculada Conceição de Maria;
4. o da Assunção de Maria, de corpo e alma, aos céus.
A festa da Imaculada Conceição tem uma dimensão antropológica linda, pois, preconiza que em Maria, Deus revelou algo maravilhoso de todos nós: no início da vida de cada pessoa, antes de qualquer mácula ou pecado, está a graça de Deus, ou seja, está a Luz, a centelha divina colocada por amor no mais profundo de cada um de nós. Esta realidade primeira é a chama divina em nós, o que nos atrairá ao longo da vida para o amor, a bondade, a justiça e a generosidade… ela jamais irá se apagar, mesmo quando as sombras do pecado a esconda! Mas, recorda-nos a Imaculada, nas palavras do apóstolo Paulo, “aonde abunda o pecado, superabunda a graça de Deus”.
Nesse sentido, por causa da anterioridade da graça em nós, cada criança que vem a este mundo é portadora, ela carrega em si a beleza de Deus, e ainda que de forma seminal, dá a ela uma dignidade inalienável. E para aflorar e fazer a diferença na vida da pessoa, a chama da graça de Deus em nós precisa ser bem cuidada: a pessoa precisa ser amada. Ao sermos amados (acolhidos, bem cuidados e educados, com exemplos vivos de bondade e justiça) desenvolvemos a nossa capacidade criativa de amar e, assim, de irradiar Deus em nós! Como nos revela a vida de Jesus, Deus é amar, é o Verbo maior da nossa vida! E toda forma de amor verdadeiro tem o poder de ser prisma, irradiar e revelar a presença amorosa de Deus no meio de nós.
A psicologia profunda afirma a importância decisiva de sermos amados, de modo muito singular na infância, nos primeiros anos de vida. Sendo amados, nós aprendemos concomitantemente a amar. Quando rejeitados, este aprendizado se torna bem mais difícil (eu diria quase impossível pelo mero esforço humano). Mas, em situações trágicas, quando falha o amor-família e somos rejeitados, a história das pessoas nos mostra que, mais uma vez, a sabedoria e a graça de Deus fazem a diferença. No entanto, é preciso haver mediações históricas de gratuidade na vida das pessoas: um lar substituto, amizades verdadeiras, experiências de perdão e de apoio solidário da comunidade ou grupo de pertença, ou seja, experiências de fé e de amor impulsionadas pelas relações humanas. Aqui se revela a nossa corresponsabilidade sinodal no projeto salvífico de Deus, pois, somente assim, com a concretização do amor entre nós, podemos desenvolver autoestima e aprendermos a amar para entrar e participar da ciranda da graça de Deus entre nós!
Agora, o que é belo mesmo se mostra quando tomamos consciência e nos comprometemos com o fato visível de que todos, cada um de nós não importa, repito, a cultura, a etnia, o sexo ou a religião, podemos ser mediação de amor para quem nos aproximamos, para as pessoas que convivemos!
Em linguagem poética religiosa, diria a partir do que Jesus nos revelou pela Parábola do Bom Samaritano, que todos podemos ser, para as pessoas ao nosso redor, de quem nos fazemos próximos, com nossas atitudes e delicadezas, um prisma precioso que irradia a luz amorosa divina.
Maria, essa mulher de beleza singular, foi um prisma precioso na vida o menino Jesus. E, por graça de Deus, ela continua a ser na vida de muitos de nós que, como eu, a acolhem como a mãezinha do céu, a profetiza da libertação e a perfeita discípula de Jesus. Maria é a mãe de Jesus e nossa também.
Somos todos incuravelmente carentes de amor verdadeiro, de sermos amados e com cada vez maior profundidade e gratuidade, não é verdade? Então, que a celebração do Natal que se aproxima nos comprometa, que favoreça e seja, antes de tudo, oportunidade de experiências de amor compartilhado entre nós e, sobremaneira, amor para com as nossas crianças e para com os pobres, injustiçados e sofredores! Quem sabe, neste contexto brasileiro tão injusto e desigual, com tantos irmãos e irmãs em situação de rua, em vez de impulsionarmos uma campanha diabólica como “Não dê esmolas ao povo da rua”, campanha que espalha indiferença social, podemos fazer como o grande sociólogo brasileiro Herbert de Souza, o Betinho, uma “Campanha do Natal sem fome”. Sim, a fome tem pressa. Ela nos interpela eticamente a não sermos indiferentes e concretizarmos juntos uma corrente do bem da partilha e da generosidade, uma “Ação pela cidadania e contra a fome”.
Que este Advento seja um tempo propício para renovarmos a decisão de amar e de irradiar a beleza da bondade e da generosidade humanas! Há um grande Lama budista que nos ensina: “A generosidade é a nossa maior fonte de prosperidade humana!”
Desejo um abençoado fim de ano para você e seus familiares, com saúde, encontros de alegria e cultivo esmerado e decidido, como o Filho de Maria, da graça de amar e de servir.
Desejo também a você o dom da paz inquieta de Jesus, mesmo se você não é cristão ou religioso como eu sou, pois, como nos ensinou e testemunhou Pedro Casaldáliga, o Profeta do Araguaia e da dignidade dos povos originários e dos mais pobres, esta paz inquieta não nos deixa em paz. Ao contrário, ela nos faz criativos na busca diária de amar e servir!
Quem venha o ano de 2023 e que sejamos melhores, “melhores na dor, melhores no amor, melhores em tudo!” (Jota Quest, na canção Dias Melhores).
Belo Horizonte, 08 de dezembro de 2022
Texto provocado pela querida Cristina Bove, profetiza da dignidade das pessoas em situação de rua, na festa da Imaculada Conceição.
Que frases proféticas e divinas, que nos mostra com clareza o caminho da salvação.