Hoje, dia 07/06/2022, fiz uma experiência inédita, por sua ambivalência radical, pois, me proporcionou intenso prazer e incomensurável alegria e, simultaneamente, aguda dor e profunda tristeza existencial.
Ela aconteceu no contexto sagrado da sala da aula. Foi durante as apresentações e os debates dos estudantes do último grupo, no último dia de um Seminário que organizei na disciplina Cultura Religiosa Pessoa e Sociedade para as turmas de graduação: “Desafios éticos do contexto contemporâneo”. O tema do último grupo do Seminário foi “O profissional de sua área, a dignidade da pessoa humana e os desafios éticos das ideologias extremistas e da violência social, dos processos de construção da identidade e os mecanismos de inclusão ou de exclusão social”. A dinâmica do Seminário exigia que cada aluno apresentasse uma síntese de sua pesquisa feita, no último mês, sobre o desafio ético previamente por ele escolhido, dentro da temática do grupo de pertença. Além disso, ele deveria ler artigos de especialistas na temática e, após a síntese, propor duas ou três questões para o debate com os colegas. E, no final, tecer suas considerações finais. Estávamos fechando o quinto dia deste Seminário e com chave de ouro, como se diz quando o sucesso foi alcançado.
Por um lado, experimentei imenso júbilo e satisfação, primeiro pela seriedade das pesquisas realizadas e apresentadas pelos estudantes. Segundo, pela profundidade das sínteses apresentadas e o alto nível dos debates entre os alunos e alunas da turma. Tudo que um professor ama e que o realiza como profissional da educação: contemplar a autonomia do voo alto e o brilho próprio de seus alunos e alunas e a demonstração da consciência crítica e autocrítica em exercício, na leitura da realidade complexa em que vivemos.
Mas, por outro lado, diante dos temas apresentados e discutidos, fui tomado interiormente por um sentimento de profundo desgosto e agudo sofrimento humano, ante a constatação que fiz e que me ocorreu com lucidez solar: tenho familiares e amigos e amigas bem próximos – pessoas por quem nutro grande afeto e afeição, alguns inclusive por quem eu tenho uma profunda admiração desde a minha mais tenra infância –, que se estivessem na Alemanha, no contexto do Nazismo, ou na Itália, no contexto do Fascismo, apoiariam Hitler ou Mussolini de peito aberto, convictos de ser aquele o melhor caminho a seguir e com a consciência tranquila – alguns destes inclusive em paz com a sua consciência cristã.
Por ser um educador comprometido com a construção de uma sociedade sem excluídos, oprimidos e miseráveis e por ser um teólogo cristão católico comprometido com o Evangelho do Reino da justiça e o seguimento de Jesus, intensificou os meus sentimentos de dor, tristeza e decepção, porque o Nazismo e o Fascismo contradizem frontalmente o ideal do Estado democrático de direito, da sociedade justa, solidária e fratersororal, como também os princípios e valores do Evangelho e o núcleo central da fé cristã.
Não se trata, veja bem, de qualquer anacronismo histórico, a relação que esta experiência, que aqui compartilho, estabelece entre o nosso contexto de 2022 e o contexto europeu de meados do século passado, durante as duas Guerras Mundiais. As muitas pesquisas e análises críticas sobre o contexto de surgimento, tanto do Nazismo quanto do Fascismo, bem como sobre as características dessas duas ideologias extremistas e os recursos utilizados por seus corifeus, Hitler e Mussolini e sua camarilha, para atrair, seduzir, convencer e submeter, na época, os alemães e os italianos, estão muito presentes e de forma repaginada, como algo inédito e bonito no contexto atual, basta dar atenção ao que estão a defender cegamente no Brasil de hoje.
Hoje são raros os que tem posturas neonazistas e neofascistas que se assumiriam, por coerência, com esta alcunha. Muitos que assumem posturas aporofóbicas, homofóbicas e racistas, igualmente, não se sentem e nem se assumem aporofóbicos, homofóbicos e racistas. Mesmo assim, é possível reconhecer que as ideologias extremistas do nazismo e do fascismo estão bem presentes hoje no meio de nós.
Os que cultivamos memória histórica crítica rapidamente discernimos, caracterizamos e denominamos, o que está em curso no contexto atual, e de modo particular no nosso país, em termos ideológicos e de posturas sociais, como neonazistas e neofascistas, dentre outras.
Há mais ingenuidade sociopolítica e econômica entre nós do que admitimos e, infelizmente, percebo que a história não é mestra para muitos, nem o esmero no cultivo da consciência crítica e autocrítica nestes tempos de cultura urbana internética. As mentalidades e convicções vem sendo formadas e alimentadas diariamente por fakenews, que correm e se propagam de uma forma assustadora, sem que se pesquise a fundo a autoria, as fontes e a autenticidade. O volume de postagens nas mídias digitais impede que muitos cultivem a reflexão crítica, a análise da informação, a aplicação do critério de verificabilidade da autenticidade e a busca da verdade. No nível internacional, por exemplo, podemos perceber um esforço massivo para negativar ou demonizar a imagem países como a China, Cuba, Rússia, Bolívia, Venezuela, Colômbia, dentre outros, mas também dos latinos que migram para os EUA, dos haitianos que migram para o Brasil, dos africanos que migram para a Europa, dos palestinos que defendem seus territórios e direitos humanos. Há todo um negacionismo das pesquisas científicas e do controle social, especialmente na área das pesquisas médicas, da vigilância sanitária, das mudanças climáticas, das causas da desigualdade social, dentre outros. No nível nacional, igualmente, facilmente se constata este esforço robótico para negativar ou demonizar os que fazem críticas socioeconômicas, anticapitalistas, bem como os os professores universitários, os especialistas críticos, os esquerdistas são rotulados como comunistas e até terroristas; para inferiorizar os povos originários e as comunidades tradicionais, quilombolas e seus saberes ancestrais, e negar ou desrespeitar os seus direitos humanos e constitucionais; para descaracterizar a luta das mulheres pelos seus direitos constitucionais; para negativar ou demonizar os LGBTQIA+; para disfarçar a aporofobia e a criminalização dos pobres, que tomam consciência, que se politizam e se organizam em movimentos sociais para fazer valer os seus direitos humanos e constitucionais; para destruir a imagem dos partidos políticos e as lideranças comprometidos com as lutas sociais e de quem faz críticas ou interfere politicamente nos interesses e privilégios das elites aristocráticas, do agronegócio, da mineração, do capital especulativo, dentre outros; para negar o terror, a tortura, a violência institucionalizada, os crimes, a corrupção e os abusos autoritários durante os anos de chumbo da ditadura militar e para blindar os governos que seguem a sua cartilha, dentre outros.
Não há neutralidade no que circula nas mídias digitais, em nossas redes sociais. A velocidade das informações que circulam e toda essa cultura urbana internética rápida, para além dos benefícios visíveis trazidos pelas novas tecnologias, está a gestar uma crescente crise ética sem precedentes, na qual os princípios e os valores estruturantes, o senso da responsabilidade e do compromisso com a verdade e a defesa da dignidade da vida, e de modo especial da vida humana, tudo se relativiza ou é mesmo sacrificado diante da legitimação de um vale tudo para alcançar e/ou defender os próprios interesses. A certeza da impunidade dos poderosos e a legitimação e normalização do uso da lógica da esperteza e do poder político e econômico sobre o Estado Democrático de Direito e o Pacto Social, colocam em questão a credibilidade das instituições e a esperança de dias melhores para os pobres e excluídos. São capazes de disseminar uma cultura do ódio e das posturas dualistas extremistas para impedir a cultura do encontro, do diálogo e da busca do melhor caminho para todos.
Repito, tenho familiares e amigos e amigas bem próximos que, estando na Alemanha de Hitler e na Itália de Mussolini, os teriam apoiado abertamente, pois, hoje estão a apoiar, com convicção e consciência tranquila, o que há de pior e de mais perverso contra a dignidade da vida dos pobres, dos indígenas, dos quilombolas, das mulheres, dos LGBTQIA+, dos trabalhadores e trabalhadoras, dos movimentos populares, dos direitos humanos, dos direitos ambientais de nossa casa comum, dos direitos constitucionais, no atual cenário político e econômico de nosso país.
Edward Guimarães é professor universitário, doutor em Ciências da Religião pela PUC Minas, mestre em Teologia pela FAJE e licenciado em Filosofia pela UFMG. Autor de Poemas Orações. Para cultivar a fé cristã adulta e seguimento de Jesus hoje a partir do Evangelho de Lucas. São Paulo: Pluralidades, 2022.
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